Por José Edilson de Amorim (professor da UFCG)
As cenas iniciais do filme Marighella (BR, 2019, direção de Wagner Moura) arrastam o telespectador, inapelavelmente, para o presente da sua narrativa – o golpe militar de 1964 no Brasil; para esse efeito, utiliza, em ritmo frenético e nervoso, imagens que já se converteram em ícones (com o perdão da obviedade) de narrativas cinematográficas sobre a ditadura militar: policiais dando porrada, pessoas atônitas apanhando e correndo, em todas as direções, militares a cavalo e tanques de guerra em movimento nas ruas do Rio de Janeiro ou de São Paulo. Aí, o filme exibe uma pletora de imagens e uma exuberância de som impressionantes, impecáveis em sua realização técnica, competentes em sua função narrativa.
Depois das ruas, as cenas de assalto a um trem, para obtenção de armas, expõem uma sequência de ações ágeis e identificam a atividade guerrilheira de um grupo de indivíduos que expressam sua oposição e sua resistência ao regime militar. Outras atividades se sucedem em um presente contínuo como se, desgarrados de passado e de futuro, os mesmos indivíduos existissem tão somente imersos no labirinto atribulado da ação armada. O filme intensifica a estratégia narrativa de aprisionar em seu presente as suas plateias: “O presente á tão grande, não nos afastemos” – parecem dizer, com Drummond, os guerrilheiros em cena.
A essa altura, já começa a se destacar a liderança do grupo de revolucionários – Preto, codinome de Marighella, ao lado de Branco, codinome do personagem inspirado em Joaquim Câmara Ferreira, ambos dirigentes do grupo guerrilheiro denominado de ALN (Ação Libertadora Nacional); este último foi morto em 1970, no DOI-CODI paulista, após ser torturado. Ocorre que militantes tão qualificados e experimentados como eles não vivem desgarrados em um presente marcado por uma ação armada atrás da outra; além desse presente, eles têm um passado de formação política. Em sua têmpera ideológica, eles viveram e vivem, com sua experiência de formação e de resistência à ditadura, atentos às três dimensões do tempo – o passado em seu aceno mítico, quase sempre aliciante; o presente em sua convocação urgente, muitas vezes inebriante; e o futuro em seu apelo utópico, mais das vezes delirante.
Já falei que o presente, intenso, está no centro da cena narrativa; então, onde estão concentradas, com maior densidade, as outras dimensões do tempo na trajetória de Marighella? Nos textos lidos ou nas palavras gritadas dos guerrilheiros contra o regime militar? Penso que, inteiramente, em nenhum desses recursos. Como já falei, o filme é narrado por uma riqueza de imagens que subsome as falas, nas quais gritos e palavrões disputam audiência com a palavra de ordem política.
É aí que o filme muda, em tomadas importantes, o ritmo do thriller hollywoodiano, incorporado pela GLOBO e adotado pela direção, e passa a narrar com a câmara calma, mais ao gosto do cinema europeu; as tomadas, em uma praia, protagonizadas por Marighella e seu filho Carlinhos, dão um exemplo dessa mudança de ritmo. A agitação da vida militante do guerrilheiro impõe que eles fiquem separados; mas as poucas cenas em que estão juntos resumem o afeto que um dedica ao outro. E dizem mais: pai e filho, apesar da pouca idade deste, já acumulam um passado de aprendizagem em comum; vivem um presente de sobressaltos e sonham um futuro de compensações. É exatamente aí, nas cenas que expressam a afeição entre Marighella e seu filho, que se adensam as três dimensões do tempo concentradas.
O conjunto dessa experiência se mostra, primeiramente, quando Carlinhos reage às exortações do um professor que apela para que se comemore, em 31 de março, o aniversário da revolução; ele responde – “É golpe! “ Depois, o aprendizado ganha expressão dramática quando Carlinhos, mesmo transido de carências e ausências, grita para o pai, que vinha ao seu encontro, que vá embora e fuja da cilada que a polícia armara para prendê-lo: Carlinhos tem a percepção juvenil do perigo, uma percepção muito próxima de uma sensibilidade e de uma compreensão afetivamente empenhadas. O filme exibe, na superfície narrativa, uma tensão mínima entre Preto e Banco, companheiros de militância e dirigentes da mesma organização; talvez essa tensão mínima esteja colocada para levar o telespectador a perceber, na configuração temática do filme, a tensão crítica máxima que está na oposição entre um líder político negro (Seu Jorge/Marighella), caçado como inimigo do país, e um policial branco, violento (Bruno Gagliasso/Lúcio), inspirado no torturador Sérgio Fleury, que se coloca como o herói que vai salvar o Brasil a ameaça comunista. Dois olhares em confronto, duas visões opostas que vêm do passado do país e ainda persistem em nossa formação social e em nossa vida prática. Aí está uma lição de Walter Benjamin, sobre o diálogo dos tempos, que ainda não aprendemos: voltar ao passado é auscultar o que ele tem a dizer ao nosso presente para ajudar a transformá-lo.
Em seu tempo narrativo, o filme não responde a algumas indagações que me suscitou: a primeira é a fala do funcionário americano ao dizer, para o arrogante e desdenhoso policial Lúcio, que não brincasse com os Estados Unidos da América (o que ele quis dizer com isso?); a segunda é uma fala que parece contraditória, quando o mesmo policial diz a Branco, todo machucado, sangrando, e pendurado no pau-de-arara, que seu amigo Marighella está morto “ – Vocês perderam”, diz Lúcio. “– Não, vocês perderam”, afirma o preso supliciado. O que Branco quis dizer?
Fora do filme, em 1979, antes do fim da ditadura, Sérgio Fleury, o torturador que inspirou Lúcio, é morto porque sabia demais, porque era um arquivo indesejável do mal para autoridades brasileiras e americanas. A memória dos que lutaram contra a ditadura se reatualiza com zelo no filme e, também, em outras formas de arte; a memória dos torturadores, quando volta, volta pelo signo da morte, da violência e da grosseria, como a ameaça de um fantasma ignominioso.
A terceira questão que o filme levanta toca um tema caríssimo para avaliar a oportunidade da luta armada contra a ditadura, um tema histórico ainda polêmico; e sua resposta não se dá inteiramente clara e, talvez, se perca em suas sutilezas imagéticas: a companheira de Marighella, temendo por sua decisão e por sua segurança, diz que ele fala da luta armada com uma superioridade moral que toca a arrogância! Marighella, mesmo acostumado ao debate político, mesmo com a confiança de quem fala com a própria companheira, silencia sobre sua observação. Quem sabe, o filme quer dizer que ele também tinha suas dúvidas sobre a estratégia que escolhera!
Enfim, Marighlella é um filme admirável. O tratamento que dá a temas como a clandestinidade, a organização da resistência e a vulnerabilidade das pessoas, nos anos de chumbo, é impecável. Basta pensar na indefinição de contornos da ALN (pessoas gravitando em torno de uma liderança), a trajetória e a atuação de Cabeça (inspirado em Virgílio Gomes da Silva, da ALN, morto em São Paulo, de forma brutal, dias depois do sequestro do embaixador americano, no qual tivera papel decisivo), basta isso para avaliar a elaboração do filme, fina até ao detalhe.
Um pecado poderia ser indicado: até onde conheço, o apoio de religiosos às ações de resistência à ditadura, no caso da ALN, foi firme e decisivo; não foi, tímido, hesitante e medroso como, parcialmente, aparece; mas pode ser que isso esteja no filme para destacar o lado absenteísta e covarde da igreja diante do poder; pode ser, também, que esteja dizendo que a instituição é uma coisa, o indivíduo é outra. No mais, nem reclamo tanto de tantos gritos e palavrões nas cenas de prisão e de espancamento. Penso que a violência e o desrespeito nas prisões, em todos os tempos, desatam reações próprias da grosseria humana. Mas, sem dúvida, as curtas cenas de discussão política (detalhes da narrativa!) em nada perderiam, e talvez ganhassem, se fossem dialogadas e não gritadas. Ainda assim, fico pensando – “Quem mói no asp’ro não fantaseia.”