A morte de Gerson de Melo Machado, de apenas 19 anos, ocorrida em João Pessoa/PB, ao invadir a jaula de uma leoa no Parque Zoobotânico Arruda Câmara — a Bica, zoológico da capital paraibana — não pode ser lida como um episódio exótico ou um ato impulsivo de imprudência juvenil. Trata-se da face mais crua do fracasso do Estado brasileiro em garantir cuidado a pessoas com transtornos mentais graves, e também da incapacidade da sociedade de enxergar humanidade onde existe vulnerabilidade.
Gerson viveu toda a sua adolescência sob o olhar — e o abandono — das instituições públicas. Vinha de um núcleo familiar já marcado pelo sofrimento psíquico: sua mãe sofria de esquizofrenia e sua avó também, o que tornava ainda mais evidente a necessidade de um acompanhamento estruturado e contínuo. Era um jovem com histórico de sofrimento mental intenso, acolhimentos intermitentes, internações descontinuadas, fugas, prisões e retornos às ruas. O Estado sabia de tudo isso. Conselhos sabiam. Relatórios existiam. Nada, porém, se converteu em política consistente de acompanhamento ou tratamento. O resultado dessa omissão prolongada tornou-se inevitável.
O país desmontou hospitais psiquiátricos sem criar redes alternativas robustas. Os CAPS não dão conta. Os Conselhos Tutelares trabalham no limite. A saúde mental virou uma promessa que depende de profissionais exaustos, equipamentos insuficientes e políticas sempre adiadas. O que resta, na prática, é uma multidão de pessoas em sofrimento severo jogadas nas ruas, entregues a um destino que todos conhecem, mas fingem não ver.
Há também, nesse caso, um espelho incômodo para toda a sociedade. Vivemos um tempo em que pets recebem cuidado, afeto e proteção — e devem receber —, enquanto muitos seres humanos vulneráveis, pobres, desorientados ou em surto são tratados como incômodos a serem evitados. Para um animal ferido, mobilizamos campanhas; para alguém como Gerson, desviamos o olhar. É a compaixão seletiva de um país que humaniza cães e gatos, mas desumaniza pessoas que não se encaixam nos padrões sociais de beleza, higiene e comportamento.
A jaula que matou Gerson não foi apenas a da leoa. Foi a jaula simbólica construída por anos de negligência, omissão e indiferença coletiva. Se não reconstruirmos a política de saúde mental, se não fortalecermos Conselhos, CAPS e equipes especializadas, e se não recuperarmos a capacidade de reconhecer a dignidade humana nos vulneráveis, novas tragédias continuarão a acontecer — anunciadas e sempre evitáveis, mas jamais evitadas.
Por Fábio de Souza Pereira – Jornalista